17.10.14

Um Pequeno Milagre - Capítulo 2


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— Demi, o que você está fazendo aqui? — Meg, a enfermeira-chefe, desaprovou com a cabeça enquanto Demi lhe entregava o atestado médico que lhe permitia voltar ao tra­balho, se juntava à turma de enfermeiras que iria tomar par­te no plantão daquele dia e estava ali para receber suas tarefas.

— Estou bem para trabalhar, ontem tive outra consulta com meu obstetra — Demi explicou.

Meg verificou o atestado e, mesmo depois de ler que estava tudo bem e que Demi podia trabalhar, não tinha muita certeza.

— Você estava exausta quando a mandei para casa na se­mana passada, Demi. Fiquei muito preocupada com você.

— Estou bem agora, depois da licença de saúde e de ter descansado tanto.

Quando Meg não pareceu convencida, Demi abriu o jogo: — Meu teste de tolerância à glicose veio um pouco alto, era esse o problema comigo, mas faz dez dias que comecei uma dieta, e além disso, venho descansando, fazendo ioga e cami­nhando pela praia. Eu me sinto fantástica... e algumas pessoas trabalham direto até as últimas semanas de gravidez!

— Não na Emergência — disse Meg —, e você certamente não irá tão longe. Com quantas semanas você está?

— Trinta — disse Demi. — E o médico disse que estou ótima.

Meg não pôde mais discutir depois dessa declaração e, de qualquer forma, aquele não era o lugar ideal para esse tipo de conversa. Então, ela mostrou o quadro de avisos paras as enfermeiras, explicando o histórico dos pacientes dispersos pelas diferentes salas que compunham a Emergência.

— Quando a sala de observação abrir, Demi pode ficar lá...

— Eu não preciso ficar plantada em um lugar só — disse Demi, culpada por estar recebendo a tarefa mais leve do plantão, mas Meg a encarou.

— Eu não tenho pessoal suficiente para passar todo meu tempo poupando você por conta de sua gravidez, Demi. Se seu médico diz que você está bem para trabalhar, e você concor­da, tenho que aceitar. Estou apenas distribuindo as tarefas aqui.

Demi concordou com a cabeça, mas não importava o quanto Meg agisse como se não desse a mínima, ela sabia que os colegas estavam zelando por ela. E pela décima vez desde que descobrira que estava grávida, ela se sentiu culpada.

Descobrir que estava grávida já tinha sido bem ruim, mas os acontecimentos seguintes foram espetaculares.

A família não falava mais com ela, especialmente depois que ela se recusara, repetidas vezes, a dizer o nome do pai do bebê. Mas como ela poderia fazer isso? Após descobrir que, não apenas seu namorado era casado, como ainda a mulher dele trabalhava no setor administrativo do hospital onde ela mesma trabalhava, apesar de ninguém saber de nada, deixara Demi tão culpada e envergonhada que ela não tivera alterna­tiva, a não ser esconder essa informação. E quando tudo pare­cia perdido para ela, fora aceita no programa de graduação em enfermagem de emergência, no Bay View Hospital, que ficava do lado oposto da cidade. Ela não estava grávida quando se candidatara ao emprego e a coisa correta a fazer seria recusar a vaga, talvez isso fosse o esperado dela, mas com um futuro tão incerto se aproximando, um salário mensal seria a melhor coisa que poderia lhe acontecer a curto prazo. Além disso, já que ela obviamente seria mãe solteira, obter mais qualifica­ções profissionais não seria de todo mal. E, por último, afas­tar-se de sua família e amigos poria fim às perguntas que não podiam ser respondidas.

Mas era uma vida solitária.

E agora, seus novos colegas estavam tendo que fazer con­cessões, não importava o quanto eles negassem isso.

— No leito sete está Matthew Dale, que tem 18 anos. Ele sofreu um ferimento de pouca gravidade na cabeça, tropeçou enquanto corria, não houve perda de consciência. Ele deve re­ceber alta, Joe está examinando o garoto agora.

— Joe? — Demi perguntou.

— O novo residente. Ele começou esta manhã. Ah, olha ele aí. — Meg acenou para ele. — O está acontecendo como leito sete, Joe?

— Vou segurá-lo aqui mais um pouco. Desculpe por abrir a sala de observação tão tarde, mas... — Ele parou de falar subi­tamente quando bateu os olhos em Demi, mas, por alguma razão, optou por não demonstrar que a havia reconhecido, e continuou a dar suas ordens sobre como o paciente deveria ser tratado. Apesar de ela não ter que explicar para ele o que fazia ali, e apesar de não existir uma razão para, pela zilhonésima primeira vez, sentir-se assim, Demi sentiu-se culpada. Qua­se como se tivesse sido pega no pulo. Fazendo o quê? Demi deu uma bronca em si mesma enquanto percorria a enfermaria de observação, acendia as luzes e preparava uma cama para Matthew. Ela estava ganhando a vida... Demi tinha que ga­nhar a vida. Ela ainda tinha dez semanas de gravidez pela fren­te e depois o bebê não poderia ir para o berçário até que tivesse tomado todas as vacinas. Se ela parasse de trabalhar agora, ficaria quase seis meses sem trabalhar.

O pavor absoluto estava sempre à espreita dela.

O que ela teria que enfrentar no futuro?

Mesmo com um emprego de período integral, pagar o alu­guel era uma luta. Sem ajuda de sua família, ela estava econo­mizando para comprar o carrinho e o berço, e já tinha compra­do algumas roupinhas minúsculas e alguns pacotes de fralda, mas ainda havia tanta coisa necessária a comprar... Sem falar no carro dela, que estava um pavor...

Demi conseguia sentir o nível de pânico aumentando con­forme se dava conta das enormes dificuldades que enfrentaria, e obrigou a si mesma a se acalmar, fazendo com que sua mente se aquietasse.

Mas isso também não ajudou muito, porque quando a onda de pânico passou, Demi se sentiu absolutamente exausta.

Segurando o lençol, ela desejou se deitar naquela cama de hospital, cobrir a cabeça com ele e dormir, engordar, ler revis­tas de bebês, sentir os chutes e apenas descansar.

— Sentindo-se melhor? — Demi deu um pulo ao ouvir a voz de Joe. — Depois do que aconteceu esta manhã?

— Eu tive uma câimbra — Demi respondeu, mais ríspida que o necessário. — E antes que você pergunte, sou completa­mente capaz de trabalhar. Estou cansada das pessoas insinua­rem que eu não deveria estar aqui. Gravidez não é doença, como você bem sabe!

Joe arregalou um pouco os olhos.

— Estou só puxando papo... Você sabe, conversa entre vizinhos?

Ela havia exagerado e sabia disso, devia desculpas.

— Sinto muito, foi um pouco difícil convencer meu médico que eu era capaz de voltar ao trabalho e Meg está o tempo todo questionando minha presença aqui. E eu, bem...

— Não acha que isso tudo seja necessário.

— Isso mesmo — disse Demi. — Eu jamais colocaria meu bebê em risco.

— Muito bem.

Ela esperou por um "Mas...", esperou que ele continuasse a conversa, que lhe passasse um pequeno sermão como tantos que vinha escutando ultimamente, mas ele parou no "Muito bem". Foi o único comentário dele sobre a situação dela.

— Marquei uma tomografia para Matthew, Ele vomitou um pouco e prefiro pecar por excesso de zelo. Ele está pálido, e não estou gostando. Vão chamá-lo daqui a pouco. Ah, e tenho uma paciente com uma das mãos machucada, é algo que vai manter você ocupada. — Ele sorriu para ela e lhe entregou a ficha de da paciente. — Fleur Edwards, 82 anos. Ela teve uma laceração séria na mão, provavelmente um tendão foi danificado, mas a equipe de cirurgia só vai poder cuidar dela bem mais tarde. Por causa da idade da paciente, ela será tratada com anestesia local, então, dê a ela uma refeição leve e depois deixe-a em jejum.

— Claro.

— Você pode fazer um eletrocardiograma nela também, por favor? Sem pressa.

Ele era legal e sossegado, Demi pensou. Ele não foi con­descendente com ela porque ela era uma estudante, não ficou dando ordens idiotas, como se ela nunca tivesse visto uma laceração antes. E, o melhor de tudo, ele não lhe passou um sermão sobre ela estar ali trabalhando.

Uma sala de observação era como um ponto de ônibus: em pé ou sentado, você ficava esperando, sem que nada de muito interessante acontecesse por um longo período. E então, tudo acontecia de repente.

Matthew foi trazido primeiro, pálido, como Joe havia des­crito, mas ele riu das brincadeiras de Demi enquanto se aco­modava na cama.

— Você sabe que fazer exercícios não é nem um pouco saudável, não é? — A mãe e a namorada tinham acompanhado Matthew até a observação, mas agora que ele estava instalado, elas podiam ir para casa. Demi fez uma série de testes neu­rológicos nele e avisou que teria que repeti-los a cada hora.

— Mesmo que você esteja dormindo.

Ela explicou à família de Matthew sobre o horário e tempo permitido de visitação e anotou para eles os números de tele­fone do hospital e do ramal onde ele estava. Quando ela ia começar a preencher a papelada da entrada dele no hospital, a porta se abriu.

— Outra paciente para você... — disse Deb, que também era estudante ali, enquanto entrava empurrando numa cadeira de rodas Fleur, uma senhorinha encantadora, com faces rosa­das e sobrancelhas pintadas, vestindo uma saia de bolinhas e uma blusa branca muito elegante, que infelizmente estava manchada de sangue. — Fleur Edwards, 82, mão machucada — disse Deb,

— Joe já havia me falado sobre a paciente — disse Demi, percebendo que Deb estava com pressa. —Algum familiar veio com ela?

— A filha virá esta tarde. — Elas olharam para a ficha da paciente. — Não tem alergias, sofre de artrite, mas, fora isso, ela parece muito bem.

— Eu assumo daqui — disse Demi, sorrindo para Fleur, que esperava com paciência sentada em sua cadeira, com o braço em uma tipoia.

— Vocês estão muito ocupados lá fora? — ela perguntou a Deb.

— Estamos começando a ficar. Temos um paciente bastan­te ferido chegando.

Apesar de estar sorrindo quando foi ajudar Fleur a se aco­modar, Demi sentia uma pontada no coração quando Deb saiu, uma pontada de alguma coisa. Ela deveria estar lá fora, e apesar de saber que adoraria entrar de cabeça no programa de graduação, Demi era realista o suficiente para ter consciên­cia que, quando voltasse da licença maternidade, sua cabeça estaria cheia de outras coisas e que ela estaria exausta por outros motivos, todos eles relacionados com aquele ser que chutava seu diafragma exatamente naquele momento. Mas nada disso era problema de Fleur.

— Olá, Sra. Edwards.

— Fleur. — Fleur sorriu.

— Meu nome é Demi. Vou cuidar da senhora pelas próximas horas.

— Mas você é que deveria estar sendo cuidada — Fleur brincou. Ela era maravilhosa. Viúva há vinte anos, era uma senhora independente e tinha cortado a mão enquanto descascava uma laranja para o café da manhã, Demi descobriu enquanto tomava nota de sua história.

— Bem, por ora nós vamos colocar uma camisola hospi­talar na senhora, e manter sua mão elevada. A senhora tomou medicação para a dor. Melhorou?

— Eu mal consigo sentir minha mão, as ataduras estão tão apertadas — disse Fleur. — Você se incomodaria de me levar ao banheiro das senhoras antes de eu ir para a cama?

— Claro que não. — Só que naquele momento Matthew se sentou com um olhar ansioso e meio desesperado, que Demi conhecia muito bem. — Só um minuto, Fleur — ela disse, e correu para pegar uma bacia e puxar a cortina de sua cama em volta dele.

— Tudo bem, Matthew — ela o acalmou. — Eu vou buscar uma toalha molhada para você. — "E fazer outra série de tes­tes em você", ela pensou. Ele estava terrivelmente pálido.

— Eu tenho que ir trabalhar — Matthew murmurou. Ele não era um garoto de 18 anos particularmente grande, mas ainda assim deu trabalhão a Demi tentando sair da cama.

— Eu tenho que ir trabalhar. Eu vou me atrasar...

— Você está no hospital, Matthew — disse Demi. — Você bateu a cabeça, lembra?

Ela estava tentando alcançar a campainha para chamar aju­da, preocupada que ele se agitasse demais, caísse da cama e se machucasse ainda mais, mas aquele estado de delírio aca­bou tão subitamente quanto começou, e Matthew pareceu se lembrar de onde estava e parou de tentar sair da cama. Ele se recostou.

— Desculpe — Ele sorriu e disse de novo. — Desculpe. Eu estou bem agora. — E ele parecia mesmo, exceto que agora, como Joe, Demi também estava preocupada.

— Matthew. Você sabe onde está?

— No hospital.

Ela checou seus sinais vitais. Eles eram os mesmos de an­tes, só a pressão sanguínea estava ligeiramente mais alta, mas aquela confusão mental momentânea perturbou Demi e ela foi para o interfone.

— Será que você pode mandar um médico para a sala de observação?

— É urgente? — Meg perguntou. — Estamos aqui às voltas com um ferido grave.

Demi olhou para o rosto pálido, porém tranquilo, de Mat­thew e hesitou por um instante. Ele parecia muito bem e seus sinais vitais estavam estáveis. Mas ainda assim, ela não estava completamente segura.

— Preciso que o ferimento na cabeça seja checado de novo — ela disse, imaginando que Meg estaria virando os olhos de impaciência agora. — Avise a Joe. Foi ele quem o examinou.

Ela voltou para junto de Matthew, e Fleur concordou preo­cupada quando Demi disse:

— Eu já vou cuidar da senhora.

— Cuide dele — disse a velha senhora. — Não se preocupe comigo.

Claro que quando Joe chegou lá, Matthew estava sentado e fazendo piada sobre sua confusão mental, recusando o oxi­gênio que Demi estava tentando lhe dar.

— Olha, sinto muito por chamar você desse jeito — ela disse a Joe.

— Sem problema. A equipe de trauma já está com o pacien­te e ele nem está tão mal assim. O que está acontecendo com Matthew?

— Nada! — disse Matthew, e certamente parecia assim.

— Ele estava bem — Demi explicou. — Na verdade, ele parece estar bem agora, mas teve um episódio de vômito um pouco antes e experimentou certa confusão mental. Ele não parecia tão bem... — Ela estava tentando pensar em mo­tivos que justificassem tirar um atendente da Emergência, mas Joe logo a interrompeu.

— Eu concordo.

Ele não pareceu nem remotamente, chateado que ela o tives­se chamado. Ao contrário, ele já estava checando as pupilas e a pressão de Matthew, enquanto Demi contava como o garo­to tentara sair da cama, insistindo que tinha que ir trabalhar.

— Como você se sente agora, Matthew?

— Bem. Um pouco de dor de cabeça.

— Tudo bem — disse Joe. — Eu vou pedir a você que se deite, para que eu possa examiná-lo. — Joe mal teve tempo de começar o exame quando Matthew recomeçou a ter ânsia de vômito, seu rosto agora mais cinza que pálido. Ele reclamava sobre a dor de cabeça.

— Como se consegue ajuda com urgência por aqui? — Joe perguntou, e foi então que Demi se deu conta que era o pri­meiro dia dele ali, e ele já parecia tão seguro e competente. Ele era bem maior que Matthew. Não dava atenção aos protestos do paciente, que não queria aceitar a máscara de oxigênio e que tenta escapar da cama, e Demi apertou o botão na pare­de. Uma luz começou a piscar acima da porta e em segundos uma pessoa da equipe atendeu o interfone. Demi explicou o que estava acontecendo.

A equipe de trauma ainda estava com o outro paciente, mas Belinda Hamilton, uma atendente mais experiente da Emergên­cia, um pouco esnobe e belíssima, veio atender ao chamado com Meg e com mais um funcionário para levar o paciente ao ressuscitador se fosse necessário. Se Matthew ficasse parado durante o exame seria mais fácil levá-lo direto para o ressusci­tador, mas tempo era essencial durante o período de observação, então, Demi trouxe o desfibrilador para junto do paciente.

Matthew parecia um touro amarrado agora, e era Joe quem o mantinha contido, ao mesmo tempo em que explicava ao seu superior o que tinha acontecido.

Mas ele nem esperou o veredicto e disse a ela o que era preciso fazer:

— Ele precisa ser entubado e passar por uma tomografia — disse Bem. — Você pode avisar aos neurocirurgiões?

Demi estava ocupada abrindo embalagens para a entubação, o coração disparado dentro do peito, espantada com a pio­ra tão rápida de Matthew.

Apesar de ter vindo ajudar, Meg não assumiu o caso, ape­nas ficou ao lado de Demi, ajudando, dando dicas, enquanto ela preparava a entubação. Raji, o anestesista, chegou bem na hora em que Matthew começou a convulsionar. Seu corpo sa­cudia violentamente.

A coisa toda foi horrível. Em questão de segundos, a situa­ção de Matthew tornou-se crítica. Sua família não havia nem tirado o carro do estacionamento.

Raji injetava drogas no paciente enquanto Joe lhe passava as informações sobre o caso e, graças a Deus, as convulsões pararam. Matthew respirava com dificuldade, mas pelo menos não estava tendo convulsões ou se debatendo. Demi podia sentir seu coração disparado quase como o de Matthew, quando lutava para tirar a cabeceira da cama, a fim de permitir que Raji tivesse acesso às vias aéreas do paciente.

— Pronto. — Joe viu o esforço dela e removeu a cabeceira da cama com facilidade. Era muito bom trabalhar com Raji, um sujeito tranquilo realmente cuidadoso com seu trabalho. Ele checou as drogas que ela havia deixado prontas e preparou ele mesmo as demais. Matthew estava no monitor cardíaco.

Mesmo que as convulsões tivessem parado, o quadro dele não era nada bom e, enquanto Demi observava Raji entubar o paciente, Meg entrava em contato com o pessoal da ressonân­cia magnética.

— Nós deveríamos avisar a família dele? — Demi perguntou.

— Eles acabaram de sair.

— Vamos nos concentrar no paciente agora — Belinda disse rispidamente, e Demi ficou vermelha.

— Vou avisar a eles assim que puder — Joe disse. — É provável que ele vá direto para a ressonância.

Levou dez, talvez 15 minutos até que Matthew, completamente contido e entubado, e conectado ao monitor cardíaco, fosse levado à ressonância e depois à cirurgia. Quando todos saíram, a sala de observação era um caos de relatórios por preencher e de material usado nos procedimentos. O equipamento de sucção ainda estava ligado e funcionando, e teria que ser limpo, os cilindros de oxigênio e as máscaras tinham que ser substituídos, a cabeceira da cama hospitalar tinha sido jogada do outro lado da sala, e havia embalagens abertas por toda parte. O desfibrilador estava uma baderna e havia seringas e frascos espalhados. Tudo aquilo tinha que ser arrumado e in­ventariado, depois substituído e inventariado de novo.

— E eu pensando que aqui você teria uma tarde tranquila! — Meg deu um sorriso solidário para Demi, mas então seu pager tocou e ela teve que atender, sem ter tido a chance de ajudar na arrumação.

Respirando fundo e se obrigando a continuar, Demi se virou e viu o rosto preocupado de Fleur.

— Ele vai ficar bem? — ela perguntou, aflita.

— Eu acho que sim — disse Demi, para em seguida sen­tir-se mortificada quando aquela, senhora orgulhosa e digna começou a chorar e a pedir desculpas sem parar.

— Eu molhei minhas calças!

— Ah, por favor, me desculpe! — Era Demi quem se des­culpava agora. — Foi culpa minha não ter levado a senhora ao banheiro!

Joe estava na escrivaninha da sala de observação, ligando para a família para dar a infeliz notícia sobre a piora de Matthew, e Demi e Fleur estavam agora no banheiro. Ela havia tirado as roupas molhadas de Fleur e protegido a mão machu­cada, que estava sendo mantida no alto. A velha senhora esta­va sentada em uma cadeira própria para banho.

— Que tal se nós duas parássemos de pedir desculpas? — Muito mais velha e bem mais sábia, Fleur olhou dentro dos olhos de Demi e sorriu. — Você não poderia simplesmente ter abandonado o rapazinho, não é?

— Eu sei.

— Só não quero que minha filha saiba que eu tive esse probleminha. Ela vai pensar que eu estou ficando senil.

— É claro que não está ficando senil! — Demi disse. Ela também estava envergonhada, então sugeriu:— Por que não lavo as suas roupas? Elas estavam manchadas de sangue, de qualquer forma. Direi à sua filha que foi por isso que eu as lavei.

— E meus tênis?

— Vou lavá-los e colocá-los para secar no respiradouro. — Ainda que, às vezes, fosse um pouco avoada, Demi era também muito prática. — Eles estarão secos antes do final do meu plantão. E ninguém nunca saberá o que aconteceu.

— Você é muito gentil.

"Não sou não", pensou Demi. Todo mundo deveria fazer aquilo. Ela ainda estremecia de horror quando via as outras enfermeiras enfiando roupas sujas dos pacientes nas malas de­les, sem pensarem que poderia ser com elas. Bem, ela não podia mudar o mundo, só cuidar de suas próprias atitudes. As­sim, ela encheu a pia com água...

— Sangue precisa ser lavado com água fria — disse Fleur, e foi assim que Demi fez. Depois deu banho na paciente.

Elas eram amigas de verdade agora, e Demi sorriu quan­do Fleur pediu o que, certamente, era um favor incomum:

— Você se importaria de lavar minhas costas? — ela pediu. — Eu nunca as alcanço.

— Claro. — As costas de Fleur realmente estavam meio sujinhas, resultado de anos de negligência, já que sua artrite não permitia que ela as alcançasse.

— Eu comprei uma escova na farmácia — disse Fleur, en­quanto Demi esfregava suas costas. — E daquelas escovas com o cabo bem longo, própria para banho, mas mesmo assim eu não consigo alcançar minhas costas. — Enquanto dava ba­nho na velha senhora, Demi imaginava como abordar um assunto com aquela mulher tão orgulhosa.

— Bem, a senhora vai precisar de alguma ajuda, agora que está com a mão machucada.

— Não vou, não! — disse Fleur, enquanto Demi a enro­lava em uma toalha. — Eu vou dar conta de tudo com apenas uma de minhas mãos.

— Ah, eu acredito que sim — disse Demi. — Mas a se­nhora vai precisar de alguns cuidados, de algo que mantenha o chuveirinho alto enquanto a senhora toma banho. E existem escovas para as suas costas com o cabo curvado. Não tenho certeza que tudo isso será de grande ajuda, mas talvez pudéssemos obter algum tipo de ajuda extra para a senhora.

— Eu gosto de ser independente.

— Bem, isso tudo vai ajudá-la a manter-se independente. Demi encolheu os ombros.

— Enquanto a senhora está aqui, pode pensar nisso.

Fleur estava certa, Joe pensou. Sentado na escrivaninha por um momento, experimentando certa dificuldade em tele­fonar para a mãe de Matthew e ainda sem estar pronto para sair dali, ele havia escutado a conversa entre as duas mulheres. Demi era gentil, muito gentil mesmo.

Era tão fácil tornar-se ríspido trabalhando na Emergência. Ele vira acontecer muitas vezes. Era quase necessário se você quisesse sobreviver naquela área. Ele mesmo tinha endureci­do, era como se estivesse meio amortecido, porque, às vezes, era mais fácil lidar com um paciente do que com uma pessoa, mais fácil não pensar sobre as famílias e os amigos que iriam sofrer, e os planos que não se realizariam. Preocupar-se ape­nas com o problema que se apresentava, sem olhar para o qua­dro geral, poupava o profissional. Mas observar Demi em­purrar a cadeira de rodas de uma sorridente Fleur, feliz e bem cuidada, com sua dignidade intacta, deixou Joe cheio de sen­timentos conflitantes,

Afinal, gravidez era a sua grande questão. Uma das muitas questões que o faziam parar para pensar ultimamente, coisa que ele tentava muito não fazer.

A maioria das pessoas tinha algo assim em suas vidas. Belinda tinha acabado de contar a ele enquanto voltavam da res­sonância, como o irmão mais novo dela quase morrera de um ferimento na cabeça. Os empregados não tinham notado a pio­ra dele e tinha sido a própria Belinda quem reconhecera os sinais, quando foi visitá-lo. Sim, todos tinham suas próprias questões. E gravidez era a de Joe: o assunto que ele tinha tentado pôr de lado, preferindo sempre lidar com fetos, e não com bebês, olhando para números e dados médicos e nunca para pessoas.

Ele não queria ser uma pessoa de coração duro, amarga... mas era isso que ele era.

Ainda observando Demi, que esfregava as costas depois de ter instalado Fleur em sua cama, ele relutava em reconhecer suas formas, o formato de sua barriga. Ele resistiu à sua neces­sidade de sair correndo dali, em dar as costas e não se preocu­par mais com ela. Ela não era uma enfermeira, ou um monte de dados em uma ficha hospitalar, ou uma mulher grávida, ela era Demi, uma pessoa gentil, que estava um pouco cansada, que tinha tido um começo difícil em seu plantão de hoje, e que tinha uma sala toda bagunçada para arrumar.

— Eu falei com a família de Matthew... — Enquanto fa­lava com ela, ele recolhia do chão a cabeceira da cama e recolocava no lugar, para depois guardar o cilindro. Eram coisas que ele não precisava fazer, mas que ele fazia por ela, assim como Demi tinha feito por Fleur. Ela jamais saberia do imenso esforço que cada uma dessas delicadezas signifi­cava para ele, porque ficar perto dela estava se tornando in­suportável para ele. —Eles estão voltando para cá. Eu lhes disse para irem direto para a recepção, mas se eles vierem parar aqui, me chame.

— Claro, farei isso. — Ela pegou um lençol limpo e come­çou a arrumar a cama. — Você acha que ele vai ficar bem?

— Ele está em cirurgia neste exato momento — Joe disse. — Então, vamos torcer pelo melhor. Se eu souber de alguma coisa, aviso você.

O plantão calmo e sossegado que ela deveria ter ali, foi tudo, menos isso. Quando ela finalmente conseguiu checar e guardar o desfibrilador, os oito leitos da sala de observação já estavam ocupados, Fleur tinha concordado em receber a visita de um terapeuta ocupacional e o horário de visitas tinha aca­bado, a sala estava, por fim, calma e em ordem. Assim, pelo menos, a enfermeira da noite teria um plantão tranquilo!

— Obrigada, Demi. — Fleur sorriu quando Demi a aju­dou a vestir suas roupas de baixo limpas e secas, antes de ir para casa. — Obrigada por todo carinho e cuidado que você teve em lavar as minhas roupas. Minha filha nunca suspeitará de nada.

— Que bom. O pessoal da cirurgia acaba de ligar para cá, avisando que em breve os cirurgiões estarão prontos para a senhora.

— E eu vou passar a noite aqui?

— Se tudo correr bem sim, o que acredito que acontecerá. Eu a verei pela manhã. — Demi sorriu. —Estarei aqui às sete horas.

— Você trabalha demais — Fleur declarou. — Eu sei que é isso que vocês, garotas, fazem hoje em dia. Mas, ainda as­sim, eu espero que seu jovem marido espere por você em casa, com o jantar pronto, assim você poderá colocar os pés para cima.

— Ah, eu deveria mesmo fazer isso — Demi sorriu e de­pois ficou vermelha, quando se deu conta que Joe havia entra­do na sala. — Boa noite, Fleur.

Ela foi até Joe.

— Não quero que ela fique preocupada.

— Desculpe, não entendi. Demi apressou-se em explicar.

— Bem, é mais fácil, às vezes, deixar que as pessoas pen­sem que há um Sr. Mitchell esperando por mim em casa. — Ela ficou ainda mais vermelha quando se deu conta que ele não tinha ouvido a conversa e não se importava com a mentirinha que ela havia contado para Fleur. — Você soube alguma coisa sobre Matthew?

— Foi isso que eu vim lhe contar. Estou indo para casa e interfonei para a UTI. Não tinha tido a chance até agora. Pare­ce que as pupilas dele se dilataram durante a ressonância. Ele foi levado às pressas para a sala de cirurgia, onde foi detectado um hematoma subdural massivo. Então, eu vim aqui para lhe dar os parabéns. Foi um ótimo diagnóstico. Várias pessoas he­sitariam com sintomas tão transitórios.

— E como ele está agora? — Demi perguntou, feliz por ter sido elogiada por ele.

Ele tivera hemorragia cerebral e a pressão intracraniana alta estava causando os sintomas. Era isso o que havia de mais as­sustador sobre machucados leves na cabeça. E era por isso também que os pacientes que passavam por tais ferimentos eram tantas vezes postos em observação. Ela já havia lido sobre isso, estudado casos assim, aprendido sobre eles em sala de aula, mas agora tinha testemunhado como se desenrolavam na vida real. A rotina de uma observação neurológica nunca mais seria considerada como rotina de novo.

— Ele está na unidade de tratamento intensivo. Serão 48 horas antes de sabermos de fato como ele vai ficar, mas há esperança.

O que era sempre bom.

Ela passou o plantão para a enfermeira da noite e foi para casa em um carro barulhento que a cada dia fazia ruídos mais preocupantes. Ela se aproximou dos portões e deu seta para indicar que ia entrar no bloco de unidades à esquerda, depois desceu do carro sem desligar o motor, porque ela sabia que um dia aquele carro não daria partida. Cansada até os ossos, ela abriu os portões e foi então que notou alguém atrás dela.

— Eu fecho para você — Joe disse, e foi o que ele fez. Ela dirigiu mais alguns metros, puxou o freio de mão e de novo, saiu do carro deixando-o ligado para abrir o portão da gara­gem, porque o senhorio era muito sovina para instalar portões automáticos.

— Eu faço isso, pode deixar. — Ele veio da direção dos portões da entrada e abrindo os portões da garagem, esperou até que ela guardasse seu carro, para depois fechá-los.

Podia até não parecer muito, mas cada tarefa que ele realizava, era uma coisa a menos para ela fazer, e ela estava tão, tão cansada, que se sentiu extremamente grata.

— Muito obrigada por isso. — Demi estava exausta de­mais para sorrir.

— Sem problema — disse Joe, indo até seu próprio carro e repetindo a sequência em sua garagem. E, ainda assim, ele não passou um sermão nela. Não ficou perguntando se ela estava bem, não perguntou se ela achava mesmo que devia trabalhar. Se ele tivesse perguntado, pensou Demi enquanto entrava em seu apartamento minúsculo, ela teria caído no choro.

Era preciso que ela comesse, mas estava cansada demais para cozinhar, então, se serviu de uma tigela de cereais.

Depois disso, um banho rápido. Ela sabia que se arrepende­ria amanhã de manhã se não tomasse banho agora. Então, sepa­rou um uniforme limpo para o dia seguinte, ajustou o desperta­dor e caiu na cama, cansada demais para se preocupar, para chorar ou mesmo para pensar.

Ela teria que estar de volta ao hospital às dez para as sete da manhã!


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Oi miguinhas ♥ td bom? To vindo postar esse capítulo rapidinho pq tenho q fazer trabalho :p Comentem para eu postar o próximo! Bruna aqui, ok? Ah e eu queria divulgar o meu outro blog, estou postando uma fic e acho q vcs vão gostar ♥ Machine' - Agora vou fazer meu trabalho ahsfasdf Comentem! Beijos, até mais tarde ♥

5 comentários:

  1. Eu to amando essa fic!!! Serio que linda 😍😍 nsbskBsj posta logo bjaao

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  2. Amando acho q vc podia postar mais 1 hj. Só acho ! :D

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  3. Amei esse capítulo ♥

    -Nathalia-

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  4. Muito boa essa fic!!!!! Bru faz maratona!!! Adoro maratona!!!!!

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  5. Perdão por não estar comentando, eu basicamente separo cada semana para me atualizar em uma fic. Eu amo fics com crianças e bebês deixa a história mais emotiva para mim, já estou imaginando Joe e Demi e a bebezinha na casa que ele pretende comprar.
    Sam, xoxo

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